Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenha calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenha agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe . todos eles príncipes na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que, contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ò príncipes, meus irmãos,
Arre estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos . mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Álvaro de Campos, Poema em Linha Recta
há certas lembranças que se sustém no limiar do esquecimento, mas que, porém, jamais se esvaem por inteiro. entranham-se na memória e por lá constróem o emaranhado de cenas de que se serve o passado. ao longo destes anos fui como uma profeta a indicar um caminho certeiro aos seus discípulos. toquei fogo, andei sob águas profundas e voei como uma águia. chorei, caí, perdi-me e encontrei-me no fim. fui mago e bruxa das mil e uma noites. uma reencarnação do sofrimento, uma febre de entusiasmo precoce. fui tudo o que possa querer ou imaginar. estas memórias costumam traduzir alguma espécie de importância, de teor relevante, de arquivos imprescindíveis ao sustento da minha alma. presumo que é a isto que se pode chamar de eternidade: algo que fica cá dentro, imergido, conservado, embrenhado, e que nunca nos deixa. e torna-se tão bonito o seu desabrochar espontâneo, num instante de reflexão ou mesmo por uma mera distracção. são como pedacinhos de vida, fragmentos de respiração, de pulsação, de sentimento. o drama de cada um, a história em relevo, o enredo consumado. agora, olhando para trás, vejo algo mais do que um sentimento de dever cumprido, vejo também uma pessoa que já não reconheço em mim. ela ficou lá atrás, por detrás do passado, aquela velha e antiga perdida, aquela insegura de si mesma, presa a contornos de segunda e a embaraços permanentes. somos matéria em constante mutação, deixamos e recebemos. percorremos ciclos a fim de alcançarmos uma beleza, sobre a qual não há analogias suficientes. nada seria o amanhã se não fosse o ontem. e é no pretérito que busco sentido para continuar adiante, na inóspita certeza de que o caminho é para a frente. poderei ser, uma versão melhorada daquilo que os anos me trouxeram ou me tiraram, também.
Um e outro bêbado regressavam a casa, errando pelas ruas desertas, inadaptados ao espaço. Pus-me a observá-los na dissipação do meu olhar. Um vinha da missa e da tasca, outro do campo e da sua colheita. Caminhavam ambos num mesmo ritmo, num corpo descambado pelos trabalhos injustos, pesados. E eu pus-me a imaginá-los na sua nudez de uma praia, sem tortuosidades da vida, desconjuntamentos e rudimentos. Segui-os pela entre abertura da porta. Cambaleiam hesitantes, bolinando à direita e à esquerda, parando, às vezes, equilibrando-se no apoio fraco um do outro. Reflectindo... avançando, recuando à procura do caminho certo que se apresenta a dobrar. Agora mais perto, ouço-os a trautear sozinhos. Ou mal dizem a vida ou cantam, avançando às guinadas. Desaparecem-me da vista, a certa distância. O resto dorme ou se refugia na sombra, nas tabernas do lazer, no fundo das casas.
por norma tudo o que é sobre analisado tende a ser destruído. comecemos pelos habituais 'talvez' à eterna juventude, ao amor, à felicidade. trata-se de uma visão sonhadora da vida, natural, humana. porém, soturna que se adivinha a priori, como um talvez que se degenera em impossibilidade, transfigurando-se num 'não'. há um sofrimento extra imposto por nós próprios. o sonhado sofre dos mesmos males que o vivido, que o real - um porque é inatingível outro pela sua frivolidade. os sonhos, a idealização da vida, não são concretizáveis, conclui-se.
Quem és tu que danças descalço na noite escura?
Porque é que te deleitas com o cheiro e o sabor do sangue, dos corpos esventrados e inertes?
Porque é que cantas sobre o silêncio tumular dos cemitérios que criaste?
Ouves os gemidos que o vento traz?
No sussurro das árvores, na fonte onde corre um fio de água, no lago onde a Lua se reflecte, ecoam gritos distantes...
Ouves?
Caminhas sobre fogo. Incendeias as searas. Deitas-te no chão com um sorriso de criança, embalada pelo crepitar das plantas que ardem.
Olhas para o céu com o olhar vazio e perguntas porquê vezes sem conta, até caíres de exaustão.
Cruzas-te com rostos. Pairas sobre o mundo. Feres com a tua espada.
Nunca páras. Nunca te deténs. Nunca olhas para trás, só vês em frente um caminho interminável.
Quem és tu que, no crepúsculo de chumbo baço, uiva de dor?
T. Miguel, Não te deixarei morrer David Crockett
nunca devemos amar em silêncio, nada é mais perigoso do que dividir com outrem os pensamentos vividos em silêncio. um amor feliz precisa do turbilhão das palavras, das frases aparentemente inúteis e sem sentido, precisa de adjectivos, de elogios, do ruído das banalidades. não há felicidade que não seja tantas vezes fútil, tantas vezes inútil.
não faz sentido manter toda esta emoção, este sentimentalismo barato, este monte de advérbios graciosos em prol do que sempre se dispersa, se esvai. não sou romancista, não sou dramaturga, muito menos escritora. não sou. estou longe desse universo. amar em vão, isso jamais. somente na ruína, no fim, no término amargo do sim. aquele não, que invade o corpo e que toca febrilmente o coração, estirpando-o, sufucando-o, degerando-o, até se rasgarem lágrimas nos olhos. uma falta de ar, uma perda de tacto e de consciência de tempo. imóvel e petrificada. estou dissecada, gélida, árida, sem textura. cansei-me desta ilusão.estou farta, exausta, confinada a um espaço sufocante. quero a falta de ar de quem corre e não a de quem ama. aquelas palavrinhas bonitinhas de outrora podem se resumir à insignificância do que traduzem, agora, eu quero palavrões. grandes palavras, cheias de raiva, furiosas por si, que não carecem de complemento, que ecoam sem esforço. vou encher-me de suor, na testa, nas costas, no peito... e todo o resto que sue! vou transpirar realidade, no esquecimento vulgar dos nomes e dos números, na convenção do arcaico modo burguês de ser e vou embriagar-me não por causas e reconhecimentos, mas por sede e sedentos. terei ideias. não me satisfarei com o pouco. não farei parte desta banalidade, desta vulgata, isso, que acontece diariamente nos quatro cantos do mundo, sobretudo aqui. aqui neste universo de gente hipócrita e mariquinhas (talvez, como eu). na sujidade, nesta imundice toda, que causa preguiça e falta de coragem. personificamos a vaidade, a luxúria rica de tão pobre. somos egoísmo e individualismo de uma só vez. é mais fácil ser assim, mais viável, esta postura única, unilateral, rasa, superficial. sem inteligência, sem arrebate, sem o som de tudo... o que vai além dos ouvidos. deixamos que a mediocridade substitua o carácter dos honestos, esses parciais sujeitos coadjuvantes. e faz com que tudo em volta seja exacto, desumano. anota em letras grandes o meu pedido, o de querer ser normal. e lê pra mim, em voz alta, o diagnóstico psiquiátrico de que: adoeci!
Apenas permaneço perdida perante estranhos, e ao mesmo tempo deixo-me envolver, estaticamente, pela escuridão. Já não me reconheço mais, nem a mim nem a este lugar. E este é o caminho de salvação da alma. Em mim tirando o facto de sentir, já não sinto nada, circunstância esta, que ninguém, aqui, está em condições de conhecer. Entre mim e o os outros, dir-se-ia que pertencemos todos ao mesmo mundo. Mas cedo vi que as vocações não coincidiam. Inquieta, perguntei-me pretensiosamente, como se pudesse escolher, e ser dona do meu destino, como poderia ser mais feliz: ignorando ou sabendo. Numa primeira instância, nem era necessário responder, não sou feliz, não o serei. Porém, busco momentos felizes. E o nada que sinto? Não sei... É um nada que corrói.
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