Ainda não aprenderam a ler-me: tentam abrir a porta com a chave que trazem no bolso, pequenina, estreita. E surpreende-me que não vejam que basta empurrar a maçaneta com um dedo. Não tenho tempo, nem paciência. Não faço a menor ideia de quase nada, sou burra. Não estou a brincar, é a sério. Nem sequer aprendi a tomar conta de mim. O que será morrer, morrer mesmo? Tão esquisito tudo, tão estranho. E mais perguntas, mais perguntas sempre. O que seria de mim se não vivesse, povoada pelos meus lobos negros? Agora, e até que não morra, não cessam de rondar-me: sinto-lhes a respiração, o cheiro, a baba. Sinto-os roçarem-me. Vejo-lhes as órbitas amarelas, os dentes. Os corpos grandes, grossos. Trotam-me em torno, avançam, recuam, não me mordem ainda. Estiveram nos meus sonhos, estão aqui agora. Tesos, à espera. Sei perfeitamente o que querem. Querem justiça. E tudo o que escrevo é uma tentativa de perdão. Mas não, não me perdoo, enquanto na minha memória ecoarem os lobos. E os vivo, neste puro amor de que sou feita.
A mim tudo me parece esquisito. Caras conhecidas, caras desconhecidas. Até que ponto conheço as caras conhecidas? (Desconversei um bocado com as mãos a falarem sozinhas porque eu sou em silêncio). Qualquer dia imobilizo-me a meio de um passo, a meio de um gesto, numa rua qualquer ou numa passadeira de peões, com os automóveis a buzinarem.
Não sei onde é que tenho a cabeça, perdi-a, entretanto, pelo caminho. Quero existir sem erros e para isto, fingo. Disfarço-me de máscaras ilimitadas, visto que não há um número necessário e suficiente, porque todas elas correspondem a diferentes níveis oscilantes do meu ser. No entanto, não há criação que seja perfeita e consequentemente real. Tenho, somente, esta arte de conciliar mundos inconciliáveis, em viver inadptada, não só em mim mesma, mas entre esta sociedade pateta, ignorante e incapaz. Contudo, faço parte dela. As coisas aparecem-nos, evidentes e claras na teoria, mas na prática tudo se derruba, desmorona, abate-se. Queria pessoas que me fizessem acreditar nos outros e em mim mesma. Queria acreditar não só nas palavras mas também nos factos. Busco o impossível, o inconcebível e inalcansável. Fingo para ser livre. Pouco me importa se é só em mim. Porque é em nós que é tudo e é em nós que há um talvez que se torna concretizável.
Há pessoas que vingam a nossa existência por serem capazes de nos transportarem para um infinito particular. Há pessoas que nos lêem o pensamento, que adivinham a nossa intimidade, que captam os nossos instintos quase ao mesmo tempo que nós. Mas há pessoas que, além disso tudo, nos podem magoar como ninguém o faria, que nos podem ferir de morte, que podem apanhar-nos a confiança e amordaçá-la.
Esta é a maior viagem da tua vida. Se olhares para trás vês todo o percurso transformar-se em apenas pequenos pontos. São assim as coisas mais importantes da vida, de um momento para o outro tornam-se nos mais simples momentos. Nos momentos irrepetíveis e efémeros. Nas vidas entrelaçadas e inimagináveis e na fugacidade de todos os sorrisos. Nas gargalhadas, nos abraços inebriantes, na fantasia inesgotável que nos percorreu os segundos, nas histórias que ficam gravadas em nós. Balanças as pernas de entusiasmo ou será de ansiedade? Os olhos irradiam ternura, sonhos. Sobretudo sonhos. Pensas agora em todas as palavras de encorajamento que ouviste durante todos os anos de existência, desde o dia em que deste os primeiros passos, ao dia em que não havia mais nada a fazer, senão decidires esquecer o que tu pensavas ser o amor da tua vida.... gastaste tudo o que tinhas a gastar, fizeste coisas impensáveis, correste riscos e passaste noites em branco, sonhaste acordada, abraçaste, choraste, e agora há de novo um horizonte lá ao fundo. Esta viagem de que todos falam só o teu coração conhece de cor, só os teus olhos a saboreiam, só tu a saberás viver. Todos os dias são as maiores viagens da tua vida.
perdemo-nos nos afectos que encontramos esporadicamente. no tamanho dos abraços, no conforto de um beijo, na calmaria de um olhar. um qualquer gesto com as mãos, um afago, um repouso, um apoio sincero de dedos entrelaçados e um acalentar do corpo. isto que vem da alma e jamais se diz. isto que vem de nós, dos nossos anseios, das nossas procuras. isto que eu e tu deveríamos, serenamente, todos os dias, ao entrar em contacto com os outros, sentir. é desta pele com pele que nasce a poesia do mundo. quero viver poeta, quero morrer poeta. e que assim seja.
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