Oremos

"Os idiotas, de modo geral, não fazem um mal por aí além, mas, se detêm poder e chegam a ser felizes em demasia podem tornar-se perigosos. É que um idiota, ainda por cima feliz, ainda por cima com o poder, é, quase sempre, um perigo. 
Oremos. 
Oremos para que o idiota só muito raramente se sinta feliz. Também, coitado, há-de ter, volta e meia, que sentir-se qualquer coisa."

Alexandre O'Neill, in "Uma Coisa em Forma de Assim"

Lucidez apagada



Existe um tremendo enfraquecimento das nossas certezas morais e intelectuais. As pessoas estão confusas na distinção entre o bem e o mal, ou o que é certo e errado. A dificuldade em fazer tal discriminação coexiste com a perda de um árbitro moral, e portanto com a falência de um guardião da verdade moral, ou melhor, com o desacrédito na existência de uma só verdade, de uma só justiça e portanto de uma só ética moral nas nossas vidas. A ideia de que não existe uma verdade é um lugar-comum na sociedade do século XXI, e rapidamente esta crescente tendência se configura numa concepção libertarista baseada na propriedade de si mesmo. O problema reside numa pobreza absoluta de compreensão de que o bem-comum, não é castrador da “nossa propriedade”, isto é, a vida “está aí” para a construirmos, para fazermos as nossas próprias escolhas, para nos desenvolvermos e para assumir as responsabilidades que advêm das nossas acções, mas não como seres isolados do mundo. O reconhecimento de que somos livres pressupõe, como todos nós já ouvimos dizer, responsabilidade, e esta responsabilidade diz respeito a todos os que nos rodeiam. A verdade é que consumidos pelo jugo de sensações fugazes e egoístas, a falência de uma felicidade futura é inevitável. Talvez, agora, eclipsados pelo caos das emoções não percebamos que estas põem em causa o mais sentido profundo da vida e que, com isto, nos tornaremos mas pobres. Mas, entretanto, por nós mesmos, aperceber-nos-emos de que, aparentemente sem razões para nos sentirmos vazios, sentiremos! Longe das amarras da responsabilidade, encontraremos algo muito mais atroz: a incompreensão do porquê de sentirmos (ainda) um sofrimento humano. O drama que a determinado prazo se irrompe na vida de qualquer um de nós é que nada nesta vida tem uma compreensão absoluta, e com semelhante rudez ou simplicidade, a lucidez deste facto figura-se como um terrível despertar para a reavaliação dos nossos próprios valores. Existe uma linha muito ténue entre bem ou mal, verdade ou pobreza absoluta, e é natural que todos nós nos sintamos muito mais vezes atraídos pelo fácil, porque somos humanos, ora… demasiado humanos. E se a lucidez é uma graça insuportável no que diz respeito à nossa interior reavaliação, o choque com a realidade é-o superlativamente. A esperteza mundana como uma virtude, a relativização como um valor, os artíficios como um modus operandi, a política como o sine qua non para sobreviver, são o verdadeiro inferno para o homem que se quer deixar guiar pelo espírito da divina sabedoria. Mas onde o espírito habita, coabita a coragem, a doçura, a iluminação e a santa liberdade. Porque não há maior conforto do que o de sermos fiéis à nossa humanidade.

Semis, infras e subs homens

A linha ténue que separa os velhos dos novos, os ultrapassados dos que persistem, é a mesma linha ténue que separa os animais do homem: a liberdade. Há quem decida livremente reduzir-se como escravos ao seu baixo ventre, às suas zonas venéreas e a outras animalidades, que decidem construir a felicidade com base em apetites fáceis e fugazes, não compreendendo que castram assim a sua verdadeira felicidade, os seus verdadeiros sonhos, não compreendendo que o desafio de serem humanos, é serem muito mais que homens, é elevarem-se, é deixarem revelar no seu coração o melhor do seu ser, ou seja, o verdadeiro ser. Porque o melhor dos homens reside no coração de cada um. E ainda há outros que decidem livremente compadecer-se às incertezas, às dores de pensar e de viver e à resignação dos males do mundo... Tudo por uma vivência constantemente movida pelo medo... E além disso e por causa disso, somos livres, ao ponto de sermos nada. Ao ponto de perdermos tempo e de nos deixarmos morrer, em vez de viver. Não podemos suportar este tipo de existência... Porque acredito que o maior arrependimento (quando ele chegar) dos que envelhecem e dos que se deixam ser ultrapassados é o de terem lutado todo o seu tempo contra a humanidade, e de agora olharem para si a lutar pelo que resta dela.

Só se vive para a frente, realizando, revestindo o nosso coração da mais bela matéria prima: o amor. Sem grandes intelectualizações e sem sequer pequenos medos. Os sonhos e o futuro soarão sempre como palavras misteriosas, serão sempre enigmas incompreensíveis, mas é neles que se vive, e é neles, que dentro e fora de nós, todos os dias acontece algo de surpreendente, se nos propusermos a realizar. 
Andando para diante. O homem deve prostrar-se e erguer-se até morrer. 


Que democracia?

Faço-vos, aqui uma declaração: não gosto desta democracia - daquilo em que os políticos a deixaram transformar; tomada de assalto por gente sem escrúpulos e com falta de formação humana e civilizacional e por tipos com ambições desmedidas e sem qualquer preocupação pelo outro.  Posso ignorar muitos decretos, muitos elementos constitucionais. Mas não ignoro a "tomada de poder" que se está a demarcar. Não vivemos uma democracia que honra a sua República, o seu país e a sua gente. Há muitos "democratas" que o são pela sua defesa e que aderiram à política pela lógica de poderem servir-se a si. Estamos todos envolvidos neste ilusionismo. Uma democracia que foi tomada por gente de transacções comissionadas, por gente ameaçadora, manhosa e perigosa.
E pior, é que vejo trincheiras, fileiras, multidões à pinha fascinadas com isso: com o poder. Prontos a trocar uma coluna vertebral por um lamborghini na garagem. E sobretudo: a trocarem o que são por uma sensação ridícula e humana de nos sentirmos superiores aos outros. Na actual sociedade democrática é convencional a despreocupação, a má-educação, o egotismo, a ganância. E é difícil ir contra aquilo, em que determinada altura, é moda. E mais do que isso, uma espécie de lei da sobrevivência. 
É uma árdua luta, a de ir contra a desregulação da ética, a desregulação que elevou a desvalorização da vida, da família, do esforço honesto e da esperança que envolve. Mas quando penso nisto, gosto também de pensar que em lugares recônditos, fétidos, doentios, depressivos, há quem faça obras assinaláveis pelos outros, sem nada em troca. Há quem conjugue à procura da verdade, o amor interpretado correctamente. Eis algo que é raro.
"Ecce Homo", de Antonio Ciseri. Pilatos mostra Jesus ao povo de Jerusalém

O todo como um só

Acontece que se instalou na nossa sociedade uma cultura de desresponsabilização, em que a figura de um homem íntegro, justo, leal e bondoso deixa de ser ambicionada pelos homens. Tudo, porque consideramos que num mundo em que a maioria é mobilizada pelo mal, pela incompetência e pela inconsciência não vale a pena a minoria, desgastar-se com actos que demonstrem uma versão melhorada de si. Resultado disto: a precariedade existente, e não falo, somente, dos políticos ou de jornalistas, falo de cada um de nós, e dos laços que estabelecemos. O que se vive, é uma terrível precariedade relacional. E parece que é assim que esperamos que o mundo bata no fundo, entre o júbilo de magnatas prepotentes e o alerta de uma ou outra figura solitária e isolada. Incrivelmente, quase todos concordamos que a solução reside no facto de esta figura solitária se transformar no mundo inteiro. No entanto, tememos que enquanto não houver uma comunhão, uma capacidade de relacionamento e de estabelecimento de laços, a minoria seja somente um motivo de risada, após tantos sacrifícios. Tememo-lo, e não compreendemos que a possibilidade de extinguir esse medo, é nossa.  E é evidente a facilidade com que nos consumimos pelo egocentrismo e por esta política de desresponsabilização pelos nossos actos e pelos outros.  Mas acredito piamente, que uma pessoa com actos nobres pode em seu redor despertar uma explosão de nobreza que conduzam outros a fazer o mesmo. Acredito, que uma pessoa alegre e que faz por contribuir para a felicidade dos outros, mobiliza uma explosão de amor em todos com quem contacta, dando coragem e motivação a quem não a tem. Acredito, que cada um de nós, pessoas vulgares, podemos dentro das nossas parcas possibilidades acender uma pequena luz na escuridão. Acredito, que é assim que uma pessoa só, se torna de todos. E que o todo, se torna uma pessoa só.  Sem medos, sem hesitações, porque nos apoiamos uns nos outros. A realidade em que vivemos não é apaziguadora. Não é fácil. Mas não é fugindo dela que somos mais felizes. Aliás, ignorá-la é condenarmo-nos a um mundo injusto, porque não fizemos justiça à nossa condição humana; é tornarmos a merda actual inevitável, e é, acima de tudo, sentenciarmos a existência de cada um de nós a uma mera sobrevivência triste e insignificante, porque nos esquecemos que o essencial da vida é o amor. São as vidas. E não as coisas.