Voltar ao mesmo sítio depois de passar precisamente um ano é sentir aquelas pessoas, aquela música na rádio, aquela piada, aqueles sorrisos, aquele primeiro olhar e abraço. É ter curiosidade em saber quem serão os próximos rostos e os próximos passos, o próximo sucesso, a próxima derrota. Agora que nos precipitamos para um novo ano, deixo-me de cinismos relativamente à felicidade que este nos trará, porque bem sabemos as dificuldades que temos. Mas o homem não se reduz a isso. Há uma felicidade maior, a suprema, que só por a buscarmos se torna real. Não vamos lá com juras, promessas, arrependimentos, não vamos lá com diminutivos, nem com mimosas palavras. Ajam, ajam deveras com o coração para que quando houver necessidade, já não sejam precisas juras, porque o sim e o não bastam. Acontece que como homens somos naturalmente humanos, mas também naturalmente divinos, e todos os os dias são parte de uma história, não deixem que alguém a conclua à noite aos enfermos, porque cada dia da vossa vida é um bocado da vossa história, e ninguém a pode contar toda. Era uma vez tu.
Não se trata só de sermos bons, conscientes, justos, moralmente correctos e outras possíveis proezas semelhantes. Não vamos contudo supor que o peso desta convenção não é suficiente, no entanto o grande objectivo é não imitarmos modelos. Tu és o arquétipo de ti mesmo, o protocolo, único e singular. Trata-se, portanto, de superar os modelos. Aprender com eles para os ultrapassar. Claro que a esta mentalidade se parece arrastar um egoísmo próprio, numa altivez e auto-afirmação ditada especificamente por cada um de nós. Contudo, importa reconhecer que só o querermos ser melhores (no sentido etimológico da palavra) pode justificar e evidenciar a confiança do homem em si próprio, nas suas possibilidades inventivas, na capacidade de desfazer ilusões inibitórias e teias de ignorância. Todavia, não é um ser por excelência que fará a diferença, nem sequer o mais ilustre. O ideal humano é o retrato de um esforço individual para uma mesma questão fulcral. Esta é a minha fé, a fé no homem. E por isso, procuro representar a crença no valor do mérito e do esforço - a fé na acção do homem. Não obstante, poucos chegam a atingir esta visão, que em teoria, até nos aparece como algo acessível a todos. O homem que rasuramos torna-se muitas vezes uma figura solitária, encarnando um tópico humanista de desprezo pela vulgata, isolando-se, hesitantemente. Não há dúvida que cheguei a uma contradição, o problema afigura-se-me: Identifico-me com a substância que escrevi até então, como com as dúvidas sobre os valores que inspiram a mesma. A mais pura das verdades é que não há uma recompensa, com um sabor de plenitude, compensando as misérias e sacrifícios. Isto é, aqueles que realizam uma obra notável no plano da realidade e que se sacrificaram pela verdade ficam confinados a um plano real profundamente decepcionante, ingrato e injusto. Na realidade, a mais pura, nua e crua verdade é que somos humanos.
terei muito que dizer entre uma chávena de chá e outra. direi: que talvez comece a escrever um livro ou que vou começar a economizar dinheiro para comprar uma máquina fotográfica nova, ou ainda, que planejo conhecer Roma no mês de Julho. poderei contar-te os meus dias de chuva e de jazz, as leituras que fiz ou os filmes a que assisti. repetir-te-ei o relato do meu cansaço, das crises de impaciência e o meu mau humor que de vez em quando se exalta. enquanto tu estarás distraído, nos teus próprios planos, a devanear a tua história. esperarei, inutilmente, que me prometas tempo para que as coisas aconteçam. dirás coisas tuas, nomes teus, organizando os factos passados numa cadeia de tempo. acompanhar-te-ei, sorrirei e demonstrarei um mínimo de interesse por isso. abrirei mão de falar de coisas minhas, observarei cada palavra e cada gesto teu. sentirás fome, comeremos e discutiremos política. terei opiniões, e concordarei com os teus gostos por partilharmos os mesmos, imaginarei como escrever sobre os teus olhos de-cor-indecifrável, os teus sonhos e sobre as tuas pequenas manias. provocarei o silêncio, perceberás que estás a errar, ou talvez a tentar consertar algumas falhas do passado. estarás em outro ritmo, numa velocidade maior, numa ânsia de testar a liberdade. e nisso eu não te poderei seguir. irás cansar-te de mim. me deixarás. e eu voltarei a tomar insistentemente o meu chá, a sonhar, a acalentar pensamentos, sozinha como sempre estive.