Medo de ter medo

Tenho passado uma estação muito difícil: não consigo escrever uma linha que seja, acerca dos meus sentimentos. Sentimentos de teor, somente, pessoal e exclusivo, explicito. Esta incapacidade desespera-me, porque é resultado de um estado interno profundamente desnorteado. A falta de sentido para a minha vida aumenta com o tempo, e consequentemente, com ele todo o meu ser se fustiga corporalmente, e a minha alma, a minha força de vida vai-se corroendo. Sonhos a mais (se bem que não acredito num grau quantitativo que adjective o acto de sonhar), incertezas petrificantes, inseguranças absurdas, e toda uma panóplia de dificuldades que no seu âmago  me atingem como se de uma doença se tratasse e que me deixa diminuída, meio exangue e com um défice de força vital. Este niilismo que deriva do medo, e que subsequentemente, provém de uma "imagem de mim" automutiladora, inibe a expansão da minha potência de vida, e até mesmo, da minha vontade de viver. No entanto, nunca fui dada a sentimentos tristes, e embora os sinta não os encarno. Porque o medo não é vida para ninguém. Eu não não ando "pr'aqui" como os demais. E ninguém vence e erradica o medo, sem agir! Portanto, ajo de forma a que exista, a que viva, a que ame e a que crie. Não obstante, o medo continuará sempre a pulsar, não sejamos crédulos e ingénuos ao ponto de o ignorarmos. Mas recuso-me a obedecer a esta doença de vida que ataca existências e as impede de crescer. A prudência e o bom-senso são aliados do medo e inimigos do nosso ser. O nosso verdadeiro tamanho medir-se-á pela movimentação dos nossos esforços para enfrentar o medo, ou pelo contrário no nosso investimento para "o manter". No fim, só nos arrependeremos das possibilidades que não aproveitámos.

Infra-homens

Os nossos vícios e defeitos tornam-nos, per si,  humanos ou  sub-humanos? A verdade é que não há humanos sem vícios e sem todas aquelas imperfeições que tanto, aparentemente, fingimos não ter. Portanto, creio eu,  que o motivo de disparidade entre o conceito de humanidade e de infra-humanidade se prende com a maior ou menor consciência dos nossos defeitos, e não na negação da existência dos mesmos. E quando uso o termo consciência, pressuponho um estado ciente interno, mas que, se manifesta, factualmente, no domínio do concreto. E é de facto, oportuno, esclarecer esta falsa e típica crença, de que o pensar agir equivale por si mesmo, à concretização da acção. Desta forma, os vícios estão inscritos no ser humano, mais no inconsciente do que no consciente, o que constitui uma barreira à expressão das capacidades e das forças humanas, reduzindo-nos muitas vezes, somente, à manifestação do "pior". No entanto, a não-expressão, não supõe uma não-existência, ou um peso menos relevante e capacitado do "melhor". Contrariamente ao que veemente defendemos, a dificuldade é fazer um exercício governado e lógico da nossa liberdade e racionalidade, tendo em conta todas as propriedades que constituem o ser humano. É o uso irracional da nossa inteligência que nos torna sub-humanos, e como tal animais. Com efeito, qual a origem que determina este comportamento cada vez mais vigente na nossa sociedade? Acredito, que o locus da questão é o medo, e a sua fácil posterior emancipação: o medo é medo do poder, mas também da impotência natural perante o poder. Medo de não saber e de ser desmascarado. Medo de ter medo. Medo de parecer ter medo. Medo de parecer vulnerável, ignorante, incapaz, medíocre, fraco. Medo de agir, de tomar decisões. Medo de amar, de criar, de viver. Medo de arriscar. Medo que serve de desculpa ao estaticismo, ao não subjugamento das forças do mundo com a nossa própria força de vida. Medo que por sua vez é desencadeado por uma simples e vergonhosa razão:  insegurança em nós mesmos, que deriva de uma subavaliação autodestrutiva que o indíviduo faz de si mesmo. Claro que falamos de algo bem enterrado, bem reprimido, sobre imensas e longínguas camadas de mecanismos de defesa, que se apresentam à superfície, com a ridícula notoriedade que verificamos todos os dias na nossa pobre sociedade.

É a vida!

Ainda não encontrámos ninguém que fosse humano, e que conseguisse com inteligência e moralidade governar-nos. Isto porque é intrínseco ao homem, amar o dinheiro, e infelizmente amamo-lo muito mais que às pessoas. Reparemos que quando falamos de crimes acontecidos, não falamos dos próprios, porque cada qual sabe de si. No entanto, sem escrúpulos e mecânicamente, proclamamos extremas justiças e averiguações face a "culposos" actos de outros. Ou seja, encaramos o outro como um meio, e tudo se inocula num espectáculo sem (res)sentimentos e sem significados. E isto é a Terra. Mas não é a Vida! Portanto, esta cosmovisão que nos remete para uma inutilidade do nosso agir, é de um enfraquecimento delirante da nossa razão. Convém-nos permanecer nesta cegueira, de que pertencemos a um mundo imutável, como se não participássemos nele. Como se estivéssemos fora da vida, dentro dela. E tudo perde significado. Mas como eu, naturalmente ou não (é relativo), tenho consciência desta "ausência de nós em nós", e me apercebo deste afastamento da vida. Sobressalto-me! O que foi, e não digo o que é, porque bem sabemos que o passado são sucessivos presentes,  não pode estratificar-nos, como se nada houvesse a fazer. E insisto, a nossa máxima não pode ser o mínimo. Não podemos criar barreiras e limitar o nosso espaço quer transcendente quer imanente, porque este ritual afasta os homens da sua humanidade e impele-o para uma sub-humanidade eivada. Entenda-se que nós, inconscientemente, já admitimos a existência de um infra-homem, visto que, não queremos ser dominados por "iguais a nós". Pedimos sim, os supra-homens, os que são superiores a nós, e portanto, imunes aos nossos defeitos e vícios. Este pressuposto, enfim, contrariamente ao que possa parecer, não é uma perspectiva catastrófica do homem, mas sim, subjaz a ideia de que a ausência de acção impede a expressão das forças e virtudes do homem enquanto indivíduo e colectividade. 

Estirpe sonhadora e louca

Repito aqui a ideia, de que enquanto homens somos intelectualmente superiores comparativamente aos animais. E esta é a verdade irrevogável! No entanto, o homem tem vindo a provar a sua inferioridade moral face às restantes criaturas.
O desafio é fazer um uso governado da razão. E creio que toda a actividade contraproducente a esta premissa se prende com a luxúria de que possuímos, de facto, razão. Contudo, factualmente não a cumprimos. Isto é, o homem é um ser pensante, e prova disso, é a capacidade de distinguir o bem do mal. Porventura, tendemos cada vez mais, para o mal, para o fácil, para o cómodo e vil.
Reparemos que esta ideia é praticamente linear e proporcional a um enfraquecimento da nossa capacidade de sonhar. E ainda que, muitos o contradigam, o sonhar é o que permite ao homem ser homem. E como tal a aspirar ao domínio do incerto, onde a capacidade de superar condições nefastas, de desvendar o desconhecido e de soltar as amarras, se torna possível.
A incapacidade de nos tornarmos loucos, aproximou-nos, ironicamente ou não, dos animais, quais seres que se limitam a reagir.
Afinal o que nos torna humanos é a nossa estirpe sonhadora e louca, e não fazemos mais nada senão sonhar. Um sonho... consiste num olhar individualizado, atento na especificidade, mas que olha na globalidade.
A decadência do sonho prende-se com diferentes questões: uma delas, e com efeito, a que é reveladora e concretizadora do sonho, é o livro.
O livro é a expressão da realização da loucura do ser humano. Afinal é da busca pela sabedoria suprema que se alimenta o indivíduo, por primazia, personalizando-se.
A sabedoria permite ao homem tornar-se mais seguro, de ter confiança nas suas faculdades e na sua possibilidade realizadora, que só pode ser motivada pela loucura e pelo sonho. Ou então, o incerto nunca se tornaria certo, o indesvendável descortinado e a ignorância eliminada.
Eis o homem, indivíduo; o homem, nação; o homem, humanidade, que sonha! E que por crer, torna tudo possível.

Portugais em Portugal

Coexistem em Portugal três espécies de português. Cada um com o seu Portugal ansioso por se cumprir. Portanto, dentro do mesmo Portugal, se preferirem, existem três espécies de Portugal.
Um, é por primazia, o composto por portugueses típicos. Daqueles que definem uma nacionalidade. O retornado que voltou de África e que, de quando em vez, dá pontapés nos caixotes; O maluco do costume que mete uns copos ao bucho; A mulher do maluco do costume, que apanha estalos, sem motivo, ou antes, conforme o que o hálito do vinho lhe elucida; Na serra, o pastor com mais rugas no lado dos olhos do que no lado da boca; As crianças, essas continuam felizes. Mais do que a mãe que se persigna, estendida sobre a beira da cama: o marido nas obras, a filha e o genro desempregados, três netos e um subsídio de desemprego enterrado. Este português encontra-se, desde sempre, divorciado de todos os governos e abandonado por todos. Existe, porque existe, e é por isso que a nação existe também.
Outro é o Portugal que o não é. Que padece numa digressão longuíssima de imitação de mentalidades estrangeiras. Esta invasão agravou-se com a moda parisiense e berlinense e tornou-se completa com a célebre frase de Sócrates "só sei que nada sei". Este Portugal é formado pela grande parte das classes superiores: os príncipes do povo, os príncipes na vida. E são eles que governam o país. Este Portugal está completamente divorciado do país que governa. Com isto, é por sua vontade, justo e corajoso. E contra sua vontade, um grandessíssimo filho da p***.
Eis o terceiro Portugal, descendente de um sonho, herdeiro da loucura, vivo pela crença. Este Portugal fez as Descobertas e construiu o Mundo. E adormeceu em Alcácer Quibir. Porém, deixou alguns parentes, que têm estado sempre, e que continuam estando, à espera que acorde. A fé, cumpre aquilo que o crente espera encontrar nela. No entanto, não oferece o mínimo fundamento para uma verdade objectiva e concretizável. Aqui, o terceiro Portugal caminha em duas vertentes: os que querem alcançar a paz e a felicidade, crêem; os que querem ser testemunhos da verdade, buscam-na.