há certas lembranças que se sustém no limiar do esquecimento, mas que, porém, jamais se esvaem por inteiro. entranham-se na memória e por lá constróem o emaranhado de cenas de que se serve o passado. ao longo destes anos fui como uma profeta a indicar um caminho certeiro aos seus discípulos. toquei fogo, andei sob águas profundas e voei como uma águia. chorei, caí, perdi-me e encontrei-me no fim. fui mago e bruxa das mil e uma noites. uma reencarnação do sofrimento, uma febre de entusiasmo precoce. fui tudo o que possa querer ou imaginar. estas memórias costumam traduzir alguma espécie de importância, de teor relevante, de arquivos imprescindíveis ao sustento da minha alma. presumo que é a isto que se pode chamar de eternidade: algo que fica cá dentro, imergido, conservado, embrenhado, e que nunca nos deixa. e torna-se tão bonito o seu desabrochar espontâneo, num instante de reflexão ou mesmo por uma mera distracção. são como pedacinhos de vida, fragmentos de respiração, de pulsação, de sentimento. o drama de cada um, a história em relevo, o enredo consumado. agora, olhando para trás, vejo algo mais do que um sentimento de dever cumprido, vejo também uma pessoa que já não reconheço em mim. ela ficou lá atrás, por detrás do passado, aquela velha e antiga perdida, aquela insegura de si mesma, presa a contornos de segunda e a embaraços permanentes. somos matéria em constante mutação, deixamos e recebemos. percorremos ciclos a fim de alcançarmos uma beleza, sobre a qual não há analogias suficientes. nada seria o amanhã se não fosse o ontem. e é no pretérito que busco sentido para continuar adiante, na inóspita certeza de que o caminho é para a frente. poderei ser,  uma versão melhorada daquilo que os anos me trouxeram ou me tiraram, também.

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