Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenha calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenha agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe . todos eles príncipes na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que, contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?

Ò príncipes, meus irmãos,
Arre estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos . mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos, Poema em Linha Recta

7 comentários:

  1. "Nem se sabe se o que acaba do dia é conosco que finda em mágoa inútil, ou se o que somos é falso entre penumbras, e não há mais que o grande silêncio sem patos bravos que cai sobre os lagos onde os juncos erguem a sua hirteza que desfalece."

    "Outros se debruçarão da mesma janela que os outros; dormem os que se esqueceram da má sombra, saudosos do sol que não tinham; e eu mesmo, que ouso sem gestos, acabarei sem remorsos, entre juncos ensopados, enlameado do rio próximo e do cansaço frouxo, sob grandes outonos de tarde, em confins impossíveis. E através de tudo, como um silvo de angústia nua, sentirei a minha alma por detrás do devaneio — UIVO fundo e puro, inútil no escuro do mundo."

    Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa.

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  2. O Fernando Pessoa, sempre, sem saber quantas almas tem.

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  3. Penso que talvez soubesse! No entanto Fernando Pessoa criou os heterónimos para ser livremente, autorizadamente, contraditório!
    Já ele dizia: "Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não pertença, estas frases, que escrevo, durarem com louvor, eu terei enfim a gente que me compreenda."

    Eu compreendo-o e admiro-o tanto quanto posso!

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  4. Eu reconheço que não sei o número, mas uma ideia me assiste: SEREMOS OS MESTRES DO NOSSO DESTINO E CAPITÃES DA NOSSA ALMA! Gostava de ter essa certeza, Rita!

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  5. Não, ele criou os heterónimos para se despersonalizar, para assim com os fragmentos do seu ser, diferentes e divergentes todos eles, pudesse conhecer-se melhor. Conseguiu? Ah José, é um caminho interminável! E ele admite saber que é impossível, aliás nós só o buscamos por ser inatingível - o quê? o nosso ser, a perfeição, a felicidade.

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  6. Eu corroboro! Compreendo-o e admiro-o tanto quanto posso!
    Bom Fim de Semana Rita! Excelente escrita e leitura!

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